Artigos de Colecionador #3.2

, em quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013 ,

Era Uma Vez - Parte II

Desconstruindo os contos de fadas: exemplos famosos


 Continuação de Artigos de Colecionador #3.1: Era Uma Vez - Parte I 


A Bela Adormecida


A linda Rosa Juvenil, Juvenil, Juvenil foi adaptada pelo Charles Perrault e pelos Grimm, entre outros. O Perrault foi o primeiro a contá-la, e dividiu a história em duas partes. Na primeira delas, começa tudo bonitinho que nem no filme da Disney, com a princesa nascendo e sendo amaldiçoada (por uma FADA, gente, a Malévola do filme é uma FADA, viu?) porque a fada ficou ofendida, e a outra fada fazendo o contrafeitiço para que a menina não morresse, só adormecesse. 

A partir daí, começa a mudar: ela não vai viver escondida na floresta, o rei só manda proibir as rocas e queimar as existentes. No entanto, praga, quando jogam, sempre pega, e a princesa, aos quinze anos, acha uma roca e espeta o dedo. Ela adormece, o pai dela coloca o corpo desfalecido numa cama chique; aí aparece um anão com botas de sete léguas e invoca a fada-boa que fez o contrafeitiço, que aparece numa carruagem levada por dragões (???). A fada vai e "ah, a princesinha vai ficar se sentindo forever alone, deixa eu apagar todo mundo junto com ela e ser solidária e tal" (eu disse que fada tem um senso de moral meio louco? Taí o exemplo de "favor por impulso"). Todo mundo dorme e ela faz surgir mato e unha-de-gato ao redor do castelo. Passam-se cem anos.

Ilustração de Henry Meynell Rheam

E agooora vem a parte BOA: uma comitiva real passa pelo castelo, a galera fica curiosa e o príncipe resolve entrar e salvar a moça, porque, né, nada mais para fazer na vida. No conto do Perrault, o rapaz acha a princesa, se apaixona, e PUF!, o feitiço acaba. Só que na versão italiana, sem maquiagem boazinha, compilada por Giambatistta Basile, né bem isso que acontece, não. O príncipe chega e se apaixona pela beleza da moça, sim. Mas ela não acorda, não. Para ela acordar, o príncipe ESTUPRA a mulher, ela engravida, tem duas filhas gêmeas e uma delas chupa o espinho da roca do dedo dela. ela acorda. 

E isso não é da cabeça do Basile, não: há registros medievais (o romance Perceforest, publicado em 1528, por exemplo) dessa mesma história do príncipe encantado fazer sexo com a bela adormecida para ela engravidar e acordar. Pelo menos eles já eram noivos nessa história aí em cima, mas. Né.

E ainda tem uma segunda parte da história, que envolve a madrasta-ogra do príncipe perseguindo a princesa ex-dormente, mas isso é até normal se compararmos ao que veio antes.

(Curiosidade: a Disney colocou o nome da princesa como Aurora, mas na musiquinha medieval que inspirou os contos, o nome dela é, na verdade, Talia! Aurora é uma das filhas que nascem do evento sexual adormecido.)

Coisa Bizarra do Conto: SOMNOFILIA.


Branca de Neve e os Sete Anões


Essa aqui é até fielmente adaptada - quando a fonte não é da Disney. As versões falam da mãe da princesa desejando que nascesse uma menina branca como a neve e outros parâmetros de beleza, tem a filha, morre. A criança cresce, a madrasta maluquinha manda matar porque o espelho dela diz que a enteada é mais bonita, a coitada foge e o caçador não tem coragem de matar, essa coisa toda. O filme não mostra, mas a rainha do mal tenta o homicídio três vezes: primeiro com um laço de vestido que sufoca a moça; depois, um pente envenenado; e, por último, a famigerada maçã. Aí vem o príncipe, o beijo, ela acorda, casa, convida a rainha para o casamento.

E lá no casamento, a galera coloca uns sapatos de ferro-iron-maiden-incandescentes nos pés da velha e forçam ela a dançar com eles até ele morrer. Fim, felicidades ao casal.

O espelho que pode ter inspirado o Espelho Mágico

E eu nem mencionei que essa história foi baseada em fatos reais, aparentemente? Há casos na Alemanha de mocinhas destratadas pelas madrastas. Inclusive, quem assiste ao seriado Once Upon a Time deve ter percebido que o nome da Branca de Neve é Mary Margaret - é o nome de um dos exemplos reais, cuja madrasta tinha até um espelho mágico. A outra era Margarete von Waldeck, também alemã e, olha só, quase casou com o Felipe II da Espanha. Só que morreu antes; dizem que envenenada.

Margarete von Waldeck, uma das Brancas de Neve originais

Coisa Bizarra do Conto: TORTURA.


Cinderela


(Esse conto tem versão em quase todos os países e reinos e culturas do mundo. Vou focar no "modelo europeu" porque não tem como analisar tudo.)

Ê, laiá, a Escrava Isaura dos contos de fadas tem um começo de história consistente em quase todas as versões. É a filha de um cara bem sucedido, que se casa de novo com um a viúva que já tem outras filhas - infelizmente, é a negligência ou ausência desse pai que deixa Cinderela a mercê da nova esposa, trabalhando como escrava. Tem versão que o pai é príncipe/rei, tem versão que é mercador. Geralmente, a madrasta consegue casar com o homem por convencê-lo de que será uma boa mãe para a menina ou convencendo a própria Cinderela da vez que ela será uma boa esposa para o pai. BEM PAOLA BRACHO.

 
(É, eu sei, usando de novo, piada ficando velha, juro que vou parar)

Aí começa a coisa boa: a Disney matou o pai da Cinderela para justificar os maus tratos, mas as versões originais do conto geralmente têm o papai como vivinho da silva e vendo a filha vestida de trapos e virando a empregada da família. Sério.

Independente disso, depois que a Cinderela sofre que nem mocinha de novela e consegue, por magia, aparecer em um(ns) baile(s) com um(ns) vestido(s) lindo(s) e tal, e aí acontece aquela do sapato, temos um momento mágico de MUTILAÇÃO. É, as irmãs malvadas da Cindy cortam partes dos pés para fazer o sapato caber. Issaê. A mais velha corta os dedos, a mais nova corta o calcanhar; ambas fazem o sapato calçar o pé e viram noivas do príncipe, temporariamente, uma de cada vez, até ele perceber que O PÉ DELAS ESTÁ PINGANDO SANGUE. E o mais legal é que é a MÃE das moças que faz elas cortarem partes do corpo, olha que legal.

A Gata Borralheira, de Millais

E depois que o príncipe retardado finalmente acha o amor de sua vida, durante o casamento, as irmãs vão de dama de honra. No entanto, como são malvadinhas, vêm duas pombinhas do Céu para arrancar os olhos delas. Uma história realmente cativante. 

A adaptação que nós vemos nos filmes origina da versão do Perrault, que é bem vanilla em comparação a essa acima descrita.

Coisa Bizarra do Conto: MUTILAÇÃO.


Chapeuzinho Vermelho


Depois que passei da primeira infância, costumava achar essa história sem graça, sabe? Cadê o príncipe encantado, cadê a fada, a bruxa, a magia, a coroa de princesa? Deixei esse conto mofar em um canto da minha mente e nunca mais pensei nele até o dia em que li uma das versões mais próximas do conto popular.

Gente, se você acha Chapeuzinho Vermelho uma história bobinha, NÃO ACHE.

Começo explicando que o conto surgiu, muito provavelmente, como uma forma de ensinar as moças de família a continuarem sendo moças de família. Isto é, elas não podiam "se perder na floresta", duplo sentido completamente intencional. Já achei até uns estudos antropológicos sobre a cor da capinha da protagonista: vermelho, a cor da paixão, luxúria, tentação. Pode ser relacionado a uma moça bonita que se enfeita e "atiça" os homens, por exemplo. Aliás, sabe o Lobo Mau? É uma metáfora, como vocês devem ter imaginado. É o homem estranho, que vai desviar a moça para o mau caminho, que vai estuprá-la, que vai sequestrá-la, algo do gênero. Em algumas versões ele é, inclusive, um lobisomem, e não um Lobo-Lobo.

Ilustração de Jessie Willcox Smith

Resumindo, há uma tonelada de conotações sexuais nessa história. E ela segue basicamente da mesma forma em todas as versões: a menina ganha a capa vermelha, e vai para a casa da vovó deixar comida de vez em quando. O Lobo Mau a observa e quer comê-la, mas tem medo de fazer isso em público (tão vendo a malícia da coisa?). Por isso, segue a Chapeuzinho pela floresta e se aproxima dela, que conta para o Lobo onde está indo.

E é aqui que o negócio fica uma delícia: nas versões mais antigas do conto, o Lobo chega na casa da Vovó antes da Chapéu. Mata a velhinha, prepara a carne, faz um cozidão daqueles, e espera. A neta chega, e o Lobo, fantasiado de Vó, oferece a comidinha gostosa para a menina. Que come, acha tudo uma delícia.

A CHAPEUZINHO COME A VÓ DELA.

Depois que ela termina, o Lobo vai e come a Chapeuzinho. Fim.

A galera começou a achar a história muito depressiva e passou a acrescentar finais alternativos, com a Chapeuzinho percebendo as intenções do Lobo e enganando-o para fugir, dizendo que está com dor de barriga ou, veja só, despindo as próprias roupas (TÃO VENDO A MALÍCIA) e fugindo enquanto o bichão fica embasbacado com o show.

O mais legal é que ela escapa sozinha nessas versões! Sem ajuda de ninguém. Muito mais interessante ver a protagonista se salvar por ser astuta do que virar mais um exemplo de donzela indefesa.

Falando nisso, o Lenhador que salva a Chapeuzinho foi uma adição bem posterior às origens desse conto. Acho que posso até afirmar que ele foi criado para tornar a história menos macabra para as crianças, porque mesmo a versão do Perrault, que é bem mais leve e recente do que as medievais - e não inclui o canibalismo - termina na morte da personagem principal. E acho que só não inclui o canibalismo porque o Lobo engana a Chapeuzinho quando ela pergunta as direções para a casa da Vó e faz ela se perder na floresta. Ou seja, ela nunca chega lá e é comida no meio do caminho. (Ai, esse duplo sentido está me matando.)

O conto é bem menos recreativo e bem mais lição de moral do que a maioria dos outros. A ideia geral é "não fale com estranhos porque é perigoso", o que serve tanto para criancinhas quanto para moças mais velhas que precisam andar sozinhas para algum lugar.

Conclusão:



Coisa Bizarra do Conto: CANIBALISMO. ESTUPRO. CONOTAÇÕES SEXUAIS JOGADAS NA SUA CARA.


Rapunzel


Esqueça o que você viu em Enrolados. Não tem nada a ver. A começar pelo fato da protagonista não ser princesa: ela era filha de um casal solitário que fez uma grande burrice: a mulher, quando finalmente engravidou, ficou com desejo de comer os nabos/<insira verdura ou legume aqui> do jardim da vizinha, que era uma FEITICEIRA. Péssima ideia, moça. Mas o marido dela teve que entrar no jardim alheio e roubar os nabos, porque a esposa estava deixando ele louco e eles queriam muito ter um filho e tal.

Obviamente, a feiticeira pega o homem no ato. Ele se desespera ao ser acusado de ladrão, e ela faz ele prometer entregar a criança quando nascer em troca da própria vida. A menina nasce, a feiticeira - chamada Gothel - batiza-a de Rapunzel e leva o bebê consigo. Ela cresce, vira uma menina linda de cabelos dourados e, ao completar doze anos, sua mãe adotiva encarcera-a no meio da floresta, em uma torre alta sem portas ou escadas, com um único quarto e uma única janela. Quando Gothel visitava, falava a célebre "Rapunzel, Rapunzel, jogue seus cabelos" e escalava pelas tranças da loirinha.

A torre da Rapunzel da Disney é coisa de sonho, né?


A parte princesa-da-Disney que a própria Disney não explorou é que o príncipe encantado acha a Rapunzel porque ela está cantando na torre dela. Poxa, a Disney FINALMENTE tinha a desculpa para fazer o dueto feliz que sempre existe nos filmes e preferiu fazer o protagonista escalar com uma flecha mas, okay. Enfim, voltando: a Rapunzel canta, o príncipe se encanta, fica de tocaia perto da torre e vê a Gothel subindo pelos cabelos. Aí repete o modus operandi e sobe a torre.

E agora vem a parte que destrói a infância rosada e purpurinada das meninas inocentes: que cês acham que o príncipe foi fazer na torre com a moça desacompanhada? Isso mesmo, SE-QUI-ÇO. Pelo menos dessa vez a outra parte estava ciente e consentindo. Consentiu tanto que engravidou depois de um tempo. Na primeira versão dos Grimm, é por causa do baby que a Gothel descobre as escapadas: a Rapunzel reclama que as roupas estão apertadas. Coitada, como que ia saber, né.

Família feliz, weee!
Essa versão foi censurada e os Grimm trocaram o aumento de peso da Rapunzel pelo aumento de peso da Gothel: a menina pergunta porque diabos é tão mais difícil subir a bruxa velha do que subir o príncipe pelos cabelos. Eu, particularmente, acho que a Gothel rodou a baiana porque foi chamada de gorda, mas a história diz que é porque a Rapunzel estava se encontrando com o príncipe.

O resto é de conhecimento geral: a velha doida corta os cabelos da menina, joga ela no meio do mato, espera o príncipe vir de novo na torre e de lá ele cai, ou empurrado, ou pelo susto que levou. Se taca nos espinhos e fica cego. Aí vaga pelo mato por um tempão até ouvir o canto de rouxinol da Rapunzel e segui-lo.

Eles se encontram, ela chora, ele se cura, os dois se casam, fim. Ah, nesse meio tempo ela deu a luz a gêmeos. Rapunzel guerreira, boto fé.

Coisa Bizarra do Conto: GRAVIDEZ ADOLESCENTE (que nem a adolescente sabia, porque, né, coitada, não tinha educação sexual.)


A Pequena Sereia


Meu fa-vo-ri-to e, certamente, a história da lista mais profundamente deliciosa em suas metáforas. Não é tão antigo quanto os outros, e sua autoria pode ser apontada diretamente a Hans Christian Andersen; ou seja, não é um pedaço de folclore escandinavo, mas sim uma obra da autoria de um escritor específico.

Antes de mergulhar na história original é preciso fazer uma observação pertinente sobre o Andersen: ele era bissexual e estava apaixonado por um rapaz chamado Edvard Collin quando escreveu essa história. Em 1836. Nem preciso dizer que relacionamentos amorosos entre pessoas do mesmo sexo eram um tabu de proporções bíblicas naquela época; oras, ainda é um assunto extremamente polêmico mesmo agora, no século XXI. Ainda assim, Andersen cortejou Collin, e inclusive falou: "Eu anseio por você como se você fosse uma bela garota calabriana".

O Collin não era bi, nem homo, estava noivo de uma moça e ficou enojado com a declaração de Andersen - o que, obviamente, quebrou o coração do escritor. E foi aí que nasceu A Pequena Sereia: Andersen escreveu a história como uma carta de amor a Collin e, na minha humilde opinião, foi uma das cartas de amor mais bonitas e melancólicas que eu já li.

Quem só conhece a versão da Disney e as que surgiram baseadas nela podem até não estar entendendo como aquela história feliz pode ser uma alegoria ao amor frustrado de um bissexual, mas é fácil ver os paralelos entre a situação de Andersen e a Pequena Sereia quando se conhece a história original.

A Pequena Sereia

O princípio das versões é basicamente o mesmo: uma sereia que se apaixona por um humano e deseja ir à terra firme para tentar concretizar seu amor. Só que as adaptações infantis tiraram muitos detalhes importantes desse início, como o fato das sereias não possuírem almas - uma clara alusão ao dogma cristão que considera homossexuais expurgados de espírito divino. Além disso, as sereias do conto só podem subir à superfície quando completam quinze anos, ao contrário do que se vê quando Ariel sobe quando bem entende, contanto que seja discreta. (Se bem que ela tem dezesseis anos, vai ver a permissão é eterna depois dos quinze?)

A reviravolta da história é a mesma nas duas versões: a mocinha sobe, vê um navio com um príncipe bonitão dentro, cai de amores à primeira vista; aí vem a tempestade que destrói o navio e a Pequena Sereia salva a vida dele. Fica na praia velando o príncipe desacordado até que aparece uma menina de um templo próximo. Nem o príncipe, nem a outra humana descobrem a verdadeira heroína.

A partir daqui, a Disney começou a colocar nuvens cor-de-rosa para tapar a tragédia anunciada da história, e as duas divergem muito.

No conto de Andersen, a protagonista volta para o mar, impressionada com tudo, e pergunta para a avó sobre os humanos. A velhinha explica que os homens vivem muito menos do que os trezentos anos do povo do mar, mas que possuem almas imortais (referência à vida eterna dos Cristãos após a morte). A princesa começa a desejar MUITO ficar com o príncipe e, vejam só, ter uma alma imortal. Ou seja, não é nem que ela queira ser "parte de seu muuuuundo", ou anseie apenas pelo amor do príncipe. Ela quer a humanidade, a alma.

E é aí que entra a bruxa do mar. Bem diferente da Úrsula do filme animado, a personagem do conto é sincera e grave. É a própria Pequena Sereia quem a procura, sem qualquer coerção ou sedução. Ao ser perguntada sobre o desejo de virar humana, a bruxa é bem direta quando explica que há essa possibilidade, mas sob um preço altíssimo.

Cooooraaações infeliiiizeeeeees~! ♫

A Úrsula tomou a voz de Ariel depois de muito convencimento. Já a bruxa do má listou várias condições sem embelezar nada, e elas eram:
  1. A sereia perderia sua língua. Não é a voz, é a LÍNGUA. Ela fica sem língua e, consequentemente, muda, porque sua voz era a mais bela de todas.
  2. Ao fazer efeito, a poção agiria como se a sereia "fosse trespassada com uma espada". E você aí reclamando da vacina de tétano.
  3. E depois de fazer efeito, apesar de conferir à sereiazinha um belo par de pernas que dançariam melhor do que quaisquer outras, haveria um efeito colateral eterno: ao andar, a sereia sentiria como se tivesse caminhando sobre lâminas afiadas. Ou seja, ela pode até andar, mas cada passo traria uma dor excruciante.
  4. Por fim, ela só conseguiria a alma imortal se recebesse um beijo de amor verdadeiro E se o príncipe a amasse a casasse com ela, porque uma parte da alma dele passaria a ser dela.
  5. SE o príncipe se casasse com outra mulher, no amanhecer do dia seguinte a sereia viraria espuma e morreria de coração partido.
Não é uma boa propaganda, certo? Só alguém muito louco seguiria em frente, concordam? Mas a Pequena Sereia aceitou as condições, mesmo assim, e foi para a superfície. Maluquinha da silva.

Qual é o seu problema, Príncipe? Olha como ela é FOFA.

Ela encontra o príncipe, que fica encantado com a beleza e a dança dela. Eles ficam amigos, e ele adora vê-la dançar. Por isso, ela dança, mesmo sofrendo que nem uma condenada. Tudo indo muito bem, até que o pai do cara manda ele se casar com a princesa do reino vizinho. O príncipe dá um piti, dizendo para sua amiga sereia que só vai casar com a menina do templo que o salvou e, TCHANRAN, é isso mesmo! A princesa noiva é a menina do templo! Olha que conveniente.

Ocorre o casamento, o coração da sereiazinha se quebra e ela aguarda o seu destino desgraçado com muita tristeza até que suas cinco irmãs aparecem nas águas que cercam o navio onde eles estão. Elas contam que visitaram a bruxa do mar e cortaram os cabelos longos em troca de uma faca que reverteria o processo da poção: se a Pequena Sereia empalasse o peito do príncipe com a tal faca e deixasse os pingos de sangue caírem aos seus pés humanos, tornaria a ser uma sereia e voltaria ao reino marinho com sua família. Todo o sofrimento acabaria, e ela viveria os trezentos anos de vida de seu povo.

O sacrifício das irmãs

A Pequena Sereia pega a faca e se aproxima do príncipe adormecido ao lado da esposa. Não consegue matá-lo. Ao amanhecer, se joga no mar e se dissolve em espuma.

Bem, era assim que o conto acabava, originalmente. No entanto, para passar uma lição de moral às crianças - era na período Vitoriano, e disciplina tinha muito valor para a Rainha Vitória - Andersen acrescentou que a sereiazinha não desaparecia, e sim virara uma "filha do ar", um tipo de ninfa, por causa de seu enorme desejo em conseguir uma alma. Nessa forma, ela precisaria viver fazendo boas ações por trezentos anos para conseguir uma alma imortal. E ainda tinha uma chantagem aos leitores, porque cada vez que uma criança agia bem comportada ela subtraia um ano desse tempo, enquanto cada malcriação aumentava um dia no prazo e ainda fazia a pobrezinha chorar!

Basicamente, Andersen imaginou algo assim...
... Mas teve que escrever algo assim.

As metáforas de Andersen para essa história são belíssimas. A Pequena Sereia é ele mesmo, amarrado a um mundo onde seus desejos mais profundos - o amor de Collin - são inalcançáveis. Collin é o príncipe, involuntariamente cruel por não entender os sentimentos da sereia. Não importa o que Andersen sacrificasse por seu amor, nada seria suficiente e, no fim das contas, o príncipe/Collin casou com uma outra moça sem se importar muito com os sentimentos da sereia/Andersen. O fato da sereia mudar de forma tantas vezes é uma alusão à identidade mercurial de Andersen e de todos os seres humanos.

A dor da Pequena Sereia é, também, um aviso: não vale a pena fazer sacrifícios tão altos em nome de pessoas que não retornam o sentimento e a consideração.

A adaptação da Disney passou longe desse turbilhão de sentimentos e drama, como podem ver. Mas existe uma outra adaptação animada bem fiel feita (wait for it) pelos japoneses: Anderusen Dōwa Ningyo hime, com o final depressivo e a melancolia e tudo o mais.

Se eu fosse a Pequena Sereia, não teria desistido da minha cauda e da minha voz mágica NEM. A. PAU.

Coisa Bizarra do Conto: MUTILAÇÃO. DOR. MAIS DOR. TENTATIVA DE ASSASSINATO PREMEDITADO. FINAL MAIS AMARGO DO QUE COMER FORMIGA.


Já estão suficientemente traumatizados?


Pois é, Colecionadores, os momentos fofinhos de suas infâncias têm origens bem depressivas e macabras. E olha que eu só fucei os mais famosos e nem mexi naqueles envolvendo gigantes comedores de criancinhas. Dá para criar uma montanha de filmes de terror só seguindo a linha pré-Grimm dessas histórias.

Não sei porque as pessoas estão reclamando tanto da recente leva de readaptações de contos de fadas para o cinema, aliás. Não é como se a Disney detivesse todos os direitos sobre eles, e os filmes live action estão bem mais próximos da qualidade sombria das primeiras versões.

Se estiverem interessados em conhecer melhor os contos de fadas sem censura, sugiro procurar livros de contos russos, escandinavos e irlandeses. Garanto que vocês não vão achar nem a Sininho fofinha - e olha que o J. M. Barrie fez as fadas de Peter Pan serem bem mais legais do que as filhas-da-mãe sem coração das lendas.

E viveram felizes para sempre!

P.S.: Falando em contos de fadas e Hans Christian Andersen, vocês estão sabendo que a Disney está adaptando A Rainha da Neve para o cinema? É isso aí, depois de Valente, vamos ter, novamente, um conto de fadas da tradição Disney. Quero ver só se vão diminuir os sentimentos doloridos do conto original.

P.P.S.: "Entretanto, uma sereia não tem lágrimas e, por isso, sofre muito mais." - A Pequena Sereia, Hans Christian Andersen. Só deixando isso aqui para partir corações.

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