Vocês aceitam um cafezinho?
Na coluna de hoje, leiam o conto que ficou em terceiro lugar no concurso cultural Conta Que Eu Apaixono, escrito pela Larissa Justo e postado com a permissão dela, é claro. =D
Fora de Tempo
Empurrando
a franja para longe do rosto, Mariana ficou na ponta dos pés e tentou alcançar
a janelinha de vidro da porta, emoldurada na madeira para permitir aos
passantes uma visão do que havia dentro da sala. Estava claro que o marceneiro
não pensara em cadeirantes, crianças e pessoas de baixa estatura ao criar o
modelo daquela porta. Entretanto, considerando que o prédio ainda não tinha rampas
para cadeiras de rodas, esse era o menor dos problemas do velho conservatório.
Não que isso importasse, no momento. Podia peticionar à diretoria a criação de
rampas para portadores de necessidades e janelinhas de vidro mais acessíveis
depois que visse - e ouvisse - o que viera ali para ver. E ouvir.
Infelizmente,
aquela era uma das salas que ficavam no fim do corredor, daquelas
construídas em forma de “L”, acompanhando a curva até a escada para o terceiro
andar. Mesmo que tivesse altura suficiente para observar dentro dela sem
dificuldades, não conseguiria ver nada enquanto seu alvo estivesse no ponto
cego de seu campo de visão limitado. Frustrada, Mariana se apoiou ainda mais na
porta, imprensando o nariz contra o vidro e forçando os olhos até ficar quase
estrábica.
Às
suas costas, Letícia cobriu um bocejo e piscou para espantar as lágrimas
trazidas pelo malabarismo facial.
-
O que, exatamente, nós viemos fazer aqui, Nana? – ela perguntou, observando a
amiga com um misto de afeto e exasperação. Ajustou melhor a mão na alça da
maleta onde guardava seu violoncelo, obviamente incomodada por estar segurando
todo aquele peso sem nenhum propósito aparente. – Você sabe quantos quilos esse
negócio tem?
Sem
tirar os olhos da janelinha, Mariana apontou na direção da parede, onde seu
violino estava encostado. Suspirando, Letícia apoiou seu instrumento ao lado da
maleta vermelha que havia presenteado sua melhor amiga no ano anterior. Pensando
melhor, resolveu se escorar na parede, também. Aquela maluca podia ficar ali o
dia todo, pendurada na porta, fazendo o que quer que fosse que estivesse
fazendo, porque era mais teimosa que uma mula. Experiências passadas indicavam
que seria muito melhor esperar com paciência do que tentar demovê-la do
objetivo da vez.
Além
disso, eventos anteriores ditavam que não era uma boa ideia largar Mariana sozinha quando estava daquele jeito. Da última vez que Letícia
deixara-a por conta própria naquele tipo de situação, a doida tinha
conseguido quase guilhotinar a própria cabeça com um fio de cobre de uma viola.
Então, sair dali sozinha estava fora de questão.
-
Pelo menos me explica qual foi a bola da vez? – Letícia questionou, dando de
ombros e ajeitando a renda do vestido, resignada.
Uma
veia irritada começou a pulsar na testa da violinista, que esmagou ainda mais o
rosto contra a porta, como se estivesse tentando atravessá-la a là Gasparzinho.
-
Daniel. Monteiro. Franca. – Mariana
rosnou, fazendo uma careta.
Letícia
nunca tivera coragem para contar à amiga que aquela careta não funcionava – os
grandes olhos castanhos e o nariz pequeno faziam com que aquele retorcer facial
a deixasse parecida com a Sininho ao invés do Hannibal Lecter. O cabelo longo,
escuro e lustroso, preso em uma trança, também não contribuía em nada com a
tentativa de intimidação. Muito pelo contrário; deixava a moça aparentando ser
muito mais jovem do que os vinte e três anos que acabara de completar.
-
O que é que tem ele?
Dessa
vez, Mariana virou a cabeça para encarar sua melhor amiga com fogo nos olhos.
-
O que é que tem ele? O que é que—
Leti. Leti, Leti, Leti.
-
Alguém já te disse que você fica parecendo uma música do Black Eyed Peas quando fala desse jeito?
Ignorando
a alfinetada, Mariana prosseguiu:
-
Vou te explicar “o que é que tem”. Começando do começo: lembra quando a Múmia Nestor
finalmente foi embora?
Mestre
Nestor era o antigo Primeiro Violino na Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e
estava beirando os oitenta anos. Apesar de inegavelmente talentoso, era um
senhor rabugento que não conseguia mais acompanhar o ritmo das peças musicais
por causa da artrite. O apelido mais comum para o velho era Múmia, mas o namorado
de Letícia costumava dizer Nestor era uma versão musicalmente sensível do
Professor Binns de Harry Potter.
Como
a explicação de Mariana incluía o nome de Nestor, Letícia já tinha alguma ideia
do que se tratava. Preparou o espírito para ouvir, mais uma vez, a ladainha que
a violinista vinha entoando nos últimos quatro anos.
-
É claro que eu lembro. Você até comprou um espumante para comemorar. – a
violoncelista retrucou, suspirando.
-
Exatamente, Leti. Eu comprei um espumante.
Sabe por quê? Porque era eu a próxima
da fila, Leti. Não tinha nenhum outro violino melhor do que o meu depois que
aquele projeto de Tuntankamon resolveu voltar para a tumba. E aí! – Mariana
exclamou, espalmando com força a porta da sala de prática. – Aí me aparece esse
sujeitinho desconhecido, que pula direto da Orquestra Sinfônica de Londres para
Minas como se respirar um pouco do ar da Europa fosse requisito necessário para
liderar a minha orquestra!
Nem
um pouco surpresa com a explosão, Letícia começou a se preparar para acalentar
a obsessão de sua melhor amiga. Bruno, seu namorado e oboísta na orquestra, costumava aconselhá-la a
deixar Mariana fazer o que bem entendesse, porque era problema dela. Mas isso
era o pensamento típico dos oboístas, que eram poucos e geralmente procurados o
suficiente para não sentirem muito a pressão da concorrência. O que não era o
caso de Nana, que viera de uma família bem humilde de São Lourenço, lutara com
unhas e dentes por uma bolsa no conservatório e estava se virando sozinha em
Belo Horizonte desde os catorze anos.
Mariana
dera o sangue por um espaço na Filarmônica. Literalmente: ela treinara tanto
que seus dedos ficaram em carne viva. As cicatrizes e calos que existiam nas
mãos dela eram permanentes, e expostos para o mundo com muito orgulho. Vendo
toda a disposição da moça em subir na cadeia alimentar da Música Clássica,
Letícia só conseguia sentir orgulho e admiração – mesmo que sua amiga fosse um
exemplo perfeito da famigerada competitividade dos violinistas.
-
Que eu saiba, os Franca vêm de uma linhagem longa de músicos, Nana. A avó dele
cantou em todas as orquestras de Paris, o avô dele comandou a Brasileira por
muito tempo e, de acordo com o Bruno, o menino toca desde os três anos de idade,
com os melhores dos melhores. Ele é uma cria do cenário musical europeu; não me
espanta que seja bom o bastante para tocar aqui, nessa vaga. – Letícia
interviu, tentando diluir o brilho assassino dos olhos da outra. – Eu sei que
você se esforçou muito, mas ele também é muito bom.
Letícia
quase pôde ouvir o bom senso de Mariana rachar estrondosamente.
-
Você ainda nem ouviu nada dele, criatura! E olha, ele pode ser até a segunda
encarnação do Paganini, eu não. Me.
IMPORTO. Quem passou os últimos dois anos dando a vida por essa vaga, Leti?
Ah,
não. Lá vinha a retórica. Letícia suspirou, mais uma vez. Pelo menos estava
oxigenando bastante os pulmões.
-
Você, Nana.
-
Quem cobriu todas as apresentações de cordas que o velho Nestor deixou de
comparecer quando estava frio ou chovendo, o que quer dizer quase todos os dias
do último ano?
-
Você, Nana.
-
Quem é que—
-
Certo, Nana, eu já entendi, não precisa pirar. Todos os membros da Orquestra
sabem que você merece a vaga. Só que o Maestro achou melhor trazer um gênio
aclamado por gente do exterior, e você não pode fazer nada a respeito.
Abrindo
a boca em um esgar de indignação, Mariana preparou-se para iniciar um novo
discurso. Entretanto, a porta onde a violinista estava se escorando abriu,
salvando os ouvidos e a paciência de Letícia. Infelizmente, a referida porta
abria para dentro da sala, o que significava que, ao ser escancarada, deixara de funcionar como ponto de apoio do corpo de Mariana, que desabara para trás, aterrissando no
próprio traseiro com um grito surpreso.
Ao
invés de colocar as mãos para amainar a queda, a moça vencera o reflexo natural
do corpo e segurara as mãos junto ao ventre para evitar que elas batessem no
chão e machucassem, impedindo-a de tocar. Ou seja, o impacto no traseiro
provavelmente doera o dobro.
Letícia
fez uma careta em consideração à dor da amiga e ergueu os olhos para ver quem
havia aberto a porta. Do alto de seus nada impressivos de um metro e meio de
altura, o Maestro encarava a violinista prostrada aos seus pés com uma
expressão curiosa. Por trás dele, vazava o choro sentido de um violino.
Assim
que parou de gemer, Mariana virou o rosto para cima e encarou o Maestro com um
olhar tão sentido e choroso quanto o som do violino que tocava na sala. Como de
praxe, ignorou as formalidades e falou logo o que estava pensando:
-
Isso é “O Trilo do Diabo”? – questionou, ainda com a cabeça virada para cima.
O
Maestro balançou a cabeça, obviamente conformado com a atitude bizarra da
violinista. Letícia cobriu com uma tosse seca a risada que ameaçava borbulhar
de sua garganta e se aproximou da amiga para ajudá-la a se levantar.
-
Isso mesmo. O Senhor Franca está praticando um solo para sua apresentação à
comunidade. É uma prova do bom gosto do rapaz escolher Tartini como primeiro
cumprimento aos ouvintes, não acha?
Mariana
não se importou em esconder a falsidade de seu sorriso ao responder:
-
Bastante apropriado, sim, que ele toque “O Trilo do Diabo”.
Erguendo
as sobrancelhas, divertido, o Maestro abriu mais a porta, obviamente indicando
que as duas deveriam entrar.
-
Foi bom ter encontrado vocês duas agora. Muito propício, muito propício. Quero
incluir um trio de cordas na apresentação do jovem Franca à sociedade mineira,
e vocês são justamente quem eu preciso para fechar três. Estava pensando em Beethoven.
Nós vamos discutir as nossas opções assim que essa música terminar.
Meio
mancando, meio saltitando, Mariana se arrastou até a curva da sala, obviamente
escutando a proposta do Maestro com apenas parte de sua atenção. Todo o resto
de sua mente estava focado na música que ecoava pelas paredes.
A
“Sonata Nº 2, Op. 1” de Giuseppe Tartini[1] –
comumente conhecida como “O Trilo do Diabo” – era uma das músicas mais
desafiantes do repertório de qualquer violinista. A peça exigia quase todas
as técnicas clássicas do instrumento. Mariana vinha tentando tocar aquela
música desde os dezessete anos, e ainda tinha muitos problemas em atravessar o Andante sem ter que repetir algumas
partes.
Daniel
Franca não tinha esse problema.
Era
um rapaz alto e magro, de tez morena e cabelos negros e cacheados caindo sobre
as orelhas. Mesmo usando calça e camisa social, não conseguia ocultar o quão
jovem era; no máximo um ou dois anos mais velho do que Mariana e Letícia. Suas
mãos compridas e bem feitas acariciavam apaixonadamente as cordas do violino
avermelhado, arrancando dele as notas desesperadas do final da música mais
famosa de Tartini.
Mariana
agarrou a mão de Letícia e cravou seus dedos (sem unhas compridas) no braço da
amiga.
-
Ele está praticando em um Stradivarius[2]?
É isso que eu estou vendo? – Mariana sibilou.
-
Você sabe muito bem que é melhor praticar no instrumento com o qual tocamos nas
apresentações. Se o dele é um Stradivarius, qual o problema de tocar nele, uai?
-
Traidora. – a violinista resmungou.
-
Você está procurando motivos para odiar o cara, Nana. Certo, ele veio e tomou a
sua vaga, mas a culpa não é dele. E você está jogando fora a oportunidade de
apreciar toda aquela beleza espanhola ali, quero dizer, você já viu o nariz
dele? E aquelas sobrancelhas? E aquela bun—
-
Cala a boca, pelo amor de Deus. Cê tá ouvindo o que cê tá dizendo? – Mariana
tapou a boca da amiga com a mão livre, horrorizada. Letícia notou, divertida,
que o sotaque interiorano da amiga estava ficando mais carregado, como
costumava acontecer quando ela ficava transtornada. – Confraternizar com o
inimigo é uma coisa, mas confraternizar com outros violinistas é impossível.
-
Por que os egos de vocês não cabem no mesmo recinto?
A
resposta de Mariana foi uma tentativa quase bem-sucedida de asfixiamento. A violoncelista teve
a vida poupada pelo encerramento da música, que foi uma deixa para que o Maestro
chamasse-as para apresentá-las à sua nova aquisição.
Aproximando-se
do pequeno tablado onde Daniel Franca aguardava, Mariana lutou para não deixar
os olhos desviarem do rosto dele. Porque ela não seria como Leti. Não, ela não
checaria se o corpo dele conseguia encher apropriadamente uma calça de linho. E
não olharia para as mãos dele, ou a forma reverente como elas seguravam o
violino (que merecia toda a reverência do mundo, é claro, era um Stradivarius).
O
ruim era o fato do rosto angular e charmoso do rapaz distraí-la tão bem quanto
o resto dele.
-
Meninas, esse é o Senhor Daniel Franca. Ele será o nosso Primeiro Violino de
agora em diante. – Daniel sorriu, assentindo à informação dada pelo Maestro. –
Senhor Franca, estas são a Senhorita Ferreira, uma de nossas mais brilhantes
violoncelistas, e a Senhorita Albuquerque, que estava cotada para a sua posição
antes que o senhor aceitasse voltar para o Brasil.
O
sorriso de Daniel tornou-se mais aberto e simpático enquanto ele se aproximava
para apertar as mãos das recém-chegadas. No entanto, a mente de Mariana travou, repetindo a frase “estava cotada para sua posição” em loop infinito - motivo pelo qual a moça quase esmagou a mão do outro
violinista quando foi sua vez de cumprimentá-lo.
Daniel
encarou-a com estranhamento depois de finalmente libertar a mão do aperto
constritor. Em resposta, Mariana ofereceu a ele um sorriso digno de um tubarão
branco do Pacífico.
-
É um prazer conhecê-lo, Senhor Franca. – Letícia apressou-se em dizer, tentando
quebrar a tensão entre os outros dois jovens da sala enquanto pisava com força
no pé da amiga.
Tirando
o olhar da violinista por alguns instantes, Daniel virou para Letícia e dirigiu
a ela, mais uma vez, seu sorriso charmoso.
-
Só Daniel, por favor. Não sou tão mais velho do que vocês. Você é Letícia
Ferreira, namorada do Bruno?
A
voz dele era rouca e, apesar de ter perfeita dicção no Português, soava em um
sotaque indefinido, uma cadência estranha, fruto de anos habituado a conversar
em línguas estrangeiras.
Mariana
lembrou que ainda estava na metade de seu curso de Francês e ficou com mais
raiva ainda.
-
Ah, sim. Ele comentou que vocês já se conhecem, da Espanha.
-
Ele ficou na minha casa quando passou uma temporada em Madri. Foi bom revê-lo. –
Daniel deu de ombros, e voltou a encarar Mariana. – Você deve ser Mariana
Albuquerque, certo? O Maestro comentou que é muito boa.
-
Aparentemente, não sou boa o bastante. – foi a resposta imediata de Mariana,
destilando rancor o bastante para inundar a sala.
Daniel
arregalou os olhos. Depois, sorriu, mostrando os dentes. Letícia tentou não
grunhir de irritação ao ver o desenrolar de uma tragédia anunciada.
-
É o que veremos.
A
reação escandalizada de Mariana foi interrompida quando o Maestro bateu palmas e
falou com riso em sua voz:
-
Bem, já que estamos todos aqui, é hora de seguirmos para a primeira reunião do
Senhor Franca com a orquestra! Vamos todos para o auditório. É uma pena eu não
ter conseguido o salão do Museu para isso, mas, como é um evento informal, vai
servir.
Os
três jovens foram empurrados para fora da sala, e Letícia praticamente arrastou
Mariana para longe de Daniel, já que a violinista parecia prestes a avançar e
arrancar a jugular dele com os dentes.
O
rapaz, por sua vez, parecia muito confortável em ser o alvo óbvio do ódio de
sua nova colega. A violoncelista agradeceu a todos os deuses e espíritos do
mundo quando os quatro finalmente chegaram ao auditório do conservatório, onde
ela poderia sentar Mariana longe de sua presa. Escolheu a última fileira de
cadeiras acolchoadas e optou pelos lugares mais próximos à saída de emergência.
Por via das dúvidas.
Enquanto
o Maestro subia no palco e iniciava a reunião, Mariana virou para Letícia com
uma expressão febril que a deixava com ares de psicopata.
-
Eu quero degolá-lo com o arco do meu violino.
-
Você não consegue nem descascar batatas, Nana.
-
Você viu o que ele fez? Você viu a cara
dele?
-
Bem, você não foi exatamente educada e cordial, uai. O que esperava?
-
Que ele fosse embora para a Espanha, largasse o violino e decidisse virar
toureiro. E aí um daqueles touros bombados faria um espeto dele, e eu ficaria
vendo a cena pelo YouTube toda vez
que precisasse me alegrar.
-
Você. É doente.
Quando
o Maestro chamou Daniel para o alto do palco e começou a recitar o quanto ele
era bom, competente e a melhor adição à Filarmônica de Minas desde sempre,
Mariana se encolheu em sua cadeira acolchoada e ficou resmungando coisas do
tipo “engomadinho” e “ladrão de tumbas” até o rapaz descer do palco.
A
situação não melhorou muito daí em diante, porque Daniel optou por sentar na
cadeira ao lado de Mariana.
Letícia
olhou para o sorriso satisfeito do rapaz, olhou para os dedos brancos de
Mariana apertando os braços do assento, e levantou.
-
Não me responsabilizo pela sua vida, Daniel. Você parece gostar de viver
perigosamente. – ela comentou, incrédula, antes de virar para a amiga. – Nana,
vou sentar com o Bruno. Chame quando precisar esconder o corpo.
E
saiu quietamente da fileira onde estavam, seu cabelo curto e enrolado
balançando a cada passo.
Mariana
respirou fundo. Uma, duas, três vezes. Ordenou suas mãos a largarem a cadeira,
porque poderia acabar forçando demais os dedos e tendo dificuldade para tocar,
depois. Já estava bem mais calma, ignorando sumariamente o outro violinista,
quando um dos violistas passou entregando as partituras do próximo projeto da
orquestra.
Absorta
nas linhas complexas da peça que o Maestro havia escolhido – Tchaikovsky,
porque, se dependesse do Maestro, nada poderia ser simples e fácil – quase não
ouviu quando Daniel falou, ao seu lado.
-
Então, você me odeia.
A
mão que segurava a partitura fechou automaticamente, amassando o papel.
Contando até dez (em Português, e depois Francês, e depois Alemão), Mariana
abriu os dedos e dedicou-se em tirar todos os vincos das folhas, pobres e
inocentes vítimas.
-
Porque você seria o Primeiro, e eu vim de fora só para acabar com a sua
alegria.
Dessa
vez, estava mais preparada. Não reagiu. Apenas olhou para frente, procurando
ouvir cada palavra que o Maestro estava dizendo sobre “O Quebra Nozes” e
buscando ignorar a risada silenciosa que chacoalhava o rapaz sentado ao seu
lado.
-
Sei como você se sente. Mas não vou pedir desculpas. A oportunidade surgiu, e
eu agarrei. Você teria feito o mesmo.
O
pior era: ele estava certo. Ela teria feito a mesma coisa. Entretanto, não
estava disposta a sentir simpatia por ele. Não mesmo.
-
Alguém já te disse que você parece o Bambi?
E
aí, toda a calma friamente coletada por Mariana quebrou como a nota de um
saxofone entupido.
-
Dá pra calar a boca?
Para
azar dela, a pergunta foi feita em um daqueles momentos em que todos do lugar
param de falar e o silêncio faz com que até as vozes mais moderadas pareçam
cortar o ambiente.
-
Algum problema, Senhorita Albuquerque? – o Maestro perguntou, erguendo as
sobrancelhas.
Toda
a orquestra virou para encará-la. Letícia, de seu lugar na segunda fileira,
bateu a mão na testa.
Mariana
sentiu todo o sangue do corpo subir para suas bochechas, assolada por uma vergonha
esmagadora. Balançou a cabeça freneticamente, não confiando na própria voz para
dar uma resposta apropriada. O Maestro sorriu para ela e piscou um olho
conhecedor para Daniel antes de voltar à palestra.
Mal
a última cabeça virara novamente para o palco, a moça sentiu uma leve cutucada
no ombro direito. Fechou os olhos e começou a revisar mentalmente o nome de
todas as peças de Beethoven, decidida a não responder. Após alguns minutos, ele
parou. O que era muito bom, porque Mariana não ia levantar e trocar de lugar. Isso seria uma clara admissão de derrota.
Quando
finalmente abriu os olhos de novo, a moça olhou de soslaio e viu
que Daniel estava tomando notas, rabiscando alguma observação no canto da
partitura. Sentiu-se estranhamente desapontada; estava esperando mais
tenacidade dele. Balançou a cabeça para dispersar o sentimento e puxou uma
caneta da bolsa para anotar o que o Maestro estava dizendo sobre o pesadelo que
era a métrica bizarra de Tchaikovsky.
Ainda
não tinha conseguido prestar a devida atenção nas palavras do mestre quando uma
partitura idêntica à sua escorregou em seu colo. Mariana olhou para o lado, mas
Daniel estava olhando para frente, parecendo muito compenetrado.
Colocou
o papel novo por cima dos seus e passou os olhos sobre o que estava impresso.
Acima do cabeçalho, havia uma mensagem, escrita em uma letra pequena e
elegante:
Por
que você não para logo de me odiar para que eu possa te convidar para sair?
Ah.
Bem.
O
que ele esperava que ela fizesse com isso?
Está
certo que ele era bonito, tocava bem (não exatamente melhor do que ela, mas bem) e sabia falar cinco línguas –
cumprindo alguns dos requisitos que ela tinha para deixar um cara dar em cima
dela – mas. Ladrão de Tumbas.
Tentando
não pensar muito sobre a atração que talvez estivesse sendo despertada por
aquele pedido tão sincero e direto, a moça pegou a própria caneta e escreveu
uma resposta:
Porque você é o
FILHO DO DEMÔNIO que o Maestro pensa que toca melhor do que eu.
E, convenhamos,
relacionamentos entre violinistas nunca funcionam.
Sem
olhar para Daniel, Mariana jogou a folha sobre as pernas dele. Seus ouvidos,
entretanto, estavam totalmente voltados para os ruídos que ele fazia, e ela
ouviu quando a caneta dele deslizou sobre o papel, redigindo outra resposta:
O que
você quer que eu faça, pare de tocar para que você se sinta menos inadequada?
E, por que não funcionaria?
Com
uma risada de escárnio, Mariana driblou as notas insanas da partitura para
escrever mais.
Claro que não, seu idiota. Não teria graça se
você desistir antes de eu limpar o chão com a sua cara, depor você do trono e
toma-lo para mim.
E, você é um violinista. Sabe como é. O ego de
um violinista é um recém-nascido que precisa de cuidado constante. Dois
violinistas juntos é, basicamente, como ter um bebê tentando cuidar de outro:
um desastre. Abandono de incapaz. Termina em morte e tragédia.
Virou
de lado para devolver o papel. A mão de Daniel já aguardava a devolução, e ele
estava sorrindo, embora ainda olhasse para a direção geral do palco. Menos de
um minuto depois, a partitura voltou para as mãos de Mariana, que sequer fingiu
não estar interessada na conversa inusitada.
Ótimo,
porque eu nunca faria isso, nem por esses seus olhos de Bambi.
Discordo
da sua percepção sobre relacionamentos entre violinistas.
Meus
pais são violinistas e estão casados há trinta anos. Não tentam se matar mais
do que acontece com outros casais. Muito pelo contrário, eles nunca discutem
por causa de trabalho, porque pensam da mesma forma.
Rolando
os olhos, Mariana sentiu sua irritação dissolver como se fosse a última nota de
uma peça particularmente violenta. Talvez não devesse odiar Daniel tão
abertamente. Afinal, como dizia o ditado: mantenha seus amigos perto e seus
inimigos mais perto ainda. Além disso, não era apropriado agir como uma
psicótica assassina em ambiente de trabalho, isso atrapalharia o rendimento da
orquestra, e essa era a última coisa que ela queria.
Resolveu
oferecer a bandeira branca e aceitar sua posição de Vice-Rei. Por enquanto. E
sem adoçar demais, obviamente.
Quer saber, é o seguinte: no dia em que eu
tocar melhor do que você, pode me chamar para sair.
Pronto.
Uma declaração inocente, que agradaria o ego dele e tornaria as coisas mais
fáceis. Satisfeita com a forma como lidara com a situação, dobrou a partitura e colocou-a em cima
dos outros papéis dele.
A
resposta veio em segundos:
Sala Três,
segundo andar. Dueto. Quem chegar primeiro escolhe a peça que o outro vai
tocar.
Enquanto
ela lia, Daniel levantou, levando suas partituras e a maleta com o Stradivarius
em direção à saída do auditório. Mariana ficou temporariamente distraída com a
reviravolta inusitada dos eventos, abrindo e fechando a boca, como um peixe,
por vários segundos.
As
portas de vai-e-vem da saída já estavam balançando quando o espírito nem um
pouco esportivo da violinista finalmente tomou conta dela, fazendo-a recolher
todos os pertences e correr para a saída com um sorriso predatório no rosto.
Daniel
estava esperando por ela do lado de fora, sorrindo abertamente, com covinhas
nas bochechas. Mariana não conseguiu evitar sorrir de volta. Ela deu alguns
passos tímidos na direção dele antes de começar a correr, sem olhar para trás,
tentando conseguir alguma vantagem no percurso até a sala de prática.
A
risada surpresa dele acompanhou-a pelo corredor.
[1] O
Trilo do Demônio, nome popular da Sonata no. 2, Op. 1 do compositor Giuseppe
Tartini, é famosa por sua dificuldade e por sua história: Tartini diz ter
sonhado que oferecia o próprio violino a Diabo, que pegou o instrumento e tocou
essa música. Ao acordar, o compositor buscou “lembrar” da música do sonho e
coloca-la no papel.
[2] Stradivarius
é uma das mais famosas marcas de instrumentos de corda do mundo, criada por Antonio
Stradivari (1644-1737). Atualmente, existem cerca de 650 violinos desse tipo no
mundo.
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