Vocês aceitam um cafezinho?
Na coluna de hoje, leiam o conto que ficou em segundo lugar no concurso cultural Conta Que Eu Apaixono, escrito pela Renata Nolasco e postado com a permissão dela, é claro. =D
Como Não se Casar com Um Príncipe Alienígena
ou
Como se Casar com o Herói
...Que também é alienígena
1:12 A.M.
Veronica não podia acreditar no que tinha acabado de ouvir.
De pé em um beco fedido de uma rua deserta, ela tinha os olhos saltados no rosto e a boca escancarada formando um “o” perfeito. Seu cabelo, que dois cabelereiros e três assistentes haviam transformando em um coque tão cheio de detalhes que mais parecia um monumento grego em sua cabeça pontuda, agora se assemelhava melhor a uma réplica de um ninho de pássaros, com os filhotes dentro e tudo mais. Seus sapatos vermelhos de salto alto estavam perdidos em algum lugar, só Deus sabe onde, e é melhor nem mencionar o estado de seu vestido.
O garoto horroroso à sua frente parecia ter saído das ilustrações de um livro infantil sobre magia. Tinha um cavanhaque pontudo, olhos pretos como carvão, e os cabelos eram de um ruivo berrante – por sinal, eles também seguiam a sua moda de ninho de pássaros; não pela correria que tinham enfrentado, mas por serem assim naturalmente. O semblante presunçoso era coberto de sardas pequenas. Ele usava um terno de veludo azul nada discreto, parecia-se com algo que sua avó teria guardado em um baú empoeirado no sótão.
Veronica concluiu que havia escutado mal e decidiu perguntar:
- O que? – Foi impossível não soar agressiva. Principalmente porque ela estava a ponto de atirar nele as latas de lixo que os cercavam.
Ele pareceu notar o perigo em que se encontrava. Qualquer um teria ficado receoso, menos aquele garoto, que era presunçoso demais para isso. Ele enfiou as mãos nos bolsos e disse calmamente:
- Não havia outra maneira de fazer isso, gatinha. Preferia virar a “abelha rainha” de um ashtorian?
- Oh, por favor, pare de dizer “gatinha”. Ninguém diz “gatinha”.
- Mas no meu banco de dados, eu li que...
- Seu banco de dados é alguma revista adolescente do milênio passado? Pelo jeito como você se veste, não me surpreenderia nenhum pouco.
Ele ficou calado. Veronica levantou uma sobrancelha.
- ...Por favor, me diga que o seu “banco de dados” não é uma revista adolescente.
Ele, novamente, ficou calado.
Sentindo seu rosto ficar vermelho, Veronica deu um soco em seu ombro ossudo e o garoto recuou um passo para trás, erguendo as duas mãos. Aquilo tinha doído mais na mão dela do que no ombro dele.
- QUE TIPO DE HERÓI VOCÊ É?
- Desculpe, o Batman estava com a agenda lotada esse mês.
- Ótimo. Maravilhoso. Além de parecer estranho, se vestir estranho e falar estranho, você também é um nerd. Há mais alguma coisa que eu precise saber sobre você? Além do fato de você ser um alien, é claro. Onde estão os seus braços extras?
- Debaixo do disfarce.
Veronica prendeu a respiração com um “oh!” alarmado. Em silêncio, os dois encararam-se por alguns segundos. Ela, apavorada. Ele, impassível como sempre.
- Foi uma piada.
- ESSA É A SUA CARA DE PIADA?
- Você tem que gritar o tempo todo? – estava começando a perder a paciência. Tinha passado dois séculos na academia para aturar esse tipo de coisa? – Olha, se isso a deixa mais tranquila, essa é a minha aparência normal.
- Não deixa. Talvez você devesse ter me deixado com os astorianos...
- Ashtorian.
- Que seja. Ao menos eles eram bonitinhos.
- Não acharia isso depois que tirassem os disfarces. Ashtorians se parecem com baratas. Também se parecem com sapos. Na verdade, eles também se parecem com um mingau de aveia gigante... – os olhos negros dele se voltaram para o céu, como se pensasse. Veronica achava que seus olhos eram a única coisa bonita que ele tinha; eram completamente pretos, sem córnea branca ou íris colorida (apenas uma grande pupila negra). – Não são muito agradáveis, gatinha. E se quer saber, as fêmeas do meu mundo me acham muito atraente.
- Eu já disse para parar de...
Veronica de Queiroz foi obrigada a parar de reclamar quando o chão começou a tremer. A terra agitava-se como se uma broca estivesse cavando de baixo para cima, derrubado as latas de lixo e o lixo fora das latas. Surpresa, em um movimento involuntário agarrou-se ao braço do garoto ruivo, escondeu o rosto atrás de seus ombros e fechou os olhos. Ele sequer se movia, como se não estivesse sentindo o tremor da terra, ou como se a achasse entediante. O tremor atingiu rapidamente um cume de violência, fazendo as pernas nuas de Veronica em seu vestido arruinado falharem, e depois parou. Como se nunca tivesse acontecido. Ela abriu os olhos. Erguia-se diante deles um cilindro cromado com uma portinha estreita na lateral e uma broca ainda girando no topo. Era simples e de aspecto barato, como se fosse uma velharia roubada do estúdio de algum filme de sci-fi de baixo orçamento, ou um item de colecionador do primeiro Star Trek. Não emitia qualquer ruído. Na verdade, nem quando estava cavando fazia qualquer barulho.
- Essa é a minha nave.
- E ela vai nos levar até a Enterprise?
- Algo do tipo.
- Espera, você conhece a Enterprise?
- O único alien nerd da face da galáxia, lembra? Duzentos anos estudando hábitos humanos têm efeitos colaterais. Venha, Uhura.
A porta estreita da nave abriu para fora ao que ele puxou a maçaneta. Veronica esperava que a entrada corresse para o lado à sua aproximação, ou algo do tipo. Estava decepcionada. Ele entrou e jogou uma escada para ela, que era mais baixa e não conseguiria alcançar o batente. Lá dentro era tão escuro, frio e apertado quanto parecia por fora. Algumas luzes brilhavam em verde e vermelho no painel, até que uma grande luminária branca acendesse sobre sua cabeça. Piscou os olhos algumas vezes para se acostumar com a claridade. A nave era circular, tinha apenas dois acentos e cerca de três metros de largura. Mexeu-se e sua cabeça bateu na quina de um painel.
- Tenha cuidado – disse ele, que já estava sentado em uma das cadeiras acolchoadas, apertando botões no painel luminoso cheio de símbolos estranhos.
- Eu esperava que fosse maior por dentro, Spock.
- Não seja idiota. E é Capitão Kirk para você.
Ela riu pela primeira vez naquela madrugada, e sentou na cadeira ao lado dele. Seu rosto ficava estranho à luz ambiente, como se fosse mais anguloso, pálido, menos humano. Não tinha reparado ainda em suas orelhas pontudas.
Definitivamente, Spock.
Veronica apertou o cinto e relaxou. Tudo o que lhe restava era apreciar a viagem, e torcer para que, para-onde-quer-que-fosse-que-ele-estivesse-a-levando, aquela bagunça pudesse ser resolvida.
Tinha feito quinze anos há menos de quatro horas, seu cabelo estava horrível, o vestido rasgado, os sapatos
arruinados, e tinha se casado com o único alien nerd da face da galáxia.
12:59 P.M.
E lá se foi mais um sapato.
Um par de scarpins de R$554,00 novinhos jogados no meio da rua. Sua mãe a mataria. Qualquer um a mataria por ter fugido de sua própria festa. E ter deixado um bando de caras lindos com armas brilhantes apontadas para os convidados? Qualquer um iria querer matá-la por isso também. Ah não, o vestido...
- Mais rápido! – gritava o sujeito ruivo naquele terno azul horroroso. Continuava tendo aquela impressão de que o conhecia de algum lugar.
- Tente correr com os pés descalços! – rosnou de volta.
- Melhor do que correr de salto alto, gatinha.
- Quem é você? Quando vai ter a bondade de me explicar o que está acontecendo?
- A sua vida corre perigo, eu a estou salvando, e é tudo o que você precisa saber até eu ter tempo de chamar a minha nave.
- A sua nave?
De repente ele parou de correr e Veronica chocou-se contra as suas costas. Uma mão fria, de dedos muito finos, envolveu seu pulso e a puxou para o beco que se estendia à sua direita. Foi jogada bruscamente sobre uma lata de lixo, e gritou o mais alto que pôde.
- Por que você está gritando? – ele perguntou alto, tentando fazer-se ouvir sobre os gritos dela.
- Você não vai conseguir me estuprar tão fácil assim! Eu fiz aulas de defesa pessoal na escola, sabia?
- Espera... O quê? – o seu tom era de indignação. Sacudia a cabeça para os lados enquanto se aproximava dela, que achava incrível como podia parecer tranquilo e esnobe mesmo em um beco cheio de lixo. – Que parte do “eu a estou salvando” você não entendeu?
Veronica gritou de novo.
- O que foi agora?
- Os... s-seus.... Seus olhos!
Ele tocou os cílios, confuso. Demorou um instante para levantar o pulso de uma vez e perceber que seu relógio estava destruído.
- Droga. Lá se foi um projetor novinho em folha... – E estalou a língua no céu da boca, puxando do bolso um objeto retangular prateado. Ela não podia ver a superfície, mas identificava o brilho esverdeado que refletia nos olhos inteiramente negros do estranho. – Temos que esperar um pouco. Se você não gritar mais, os ashtorians dificilmente nos encontrarão. São péssimos rastreadores.
- Os o que?
- Ashtorians. Sabe o gatinho de olhos verdes com quem você ia dançar?
- Aquele em que você atirou?
- Esse mesmo. – Ela cruzou os braços sobre o peito. Não tinha graça estar furiosa e ser sarcástica quando ele era tão indiferente a tudo. – Ele é um príncipe ashtorian. Você estava prestes a se casar com ele.
- Eu acho que você é completamente louco. Aqueles meninos são algum tipo de gangue? Eles estão roubando os convidados, é isso?
- Eles são ashtorians. Seu planeta natal foi destruído na última guerra contra os cyberiat. Uma tripulação em missão de reconhecimento em um planeta colônia em potencial foi tudo o que restou – são os “meninos da gangue” que você conheceu. Infelizmente a missão era exclusiva para homens, e ashtorians só podem se reproduzir com fêmeas. Segundo a lei de seu planeta, somente um membro da realeza ashtoriana pode ter ovos com uma fêmea, e somente quando ela é formalizada como sua... “esposa”, como diriam os humanos. E essa era você. Felizmente para eles, havia um príncipe guerreiro na missão. Esse grupo gastou uns cinquenta anos procurando alguma espécie que fosse compatível.
- E atacaram na minha festa de quinze anos?! – Veronica apontou para si mesma espantada.
- São uma raça estúpida – deu de ombros, como fizesse coisas assim todos os dias. – Devem ter pegado a primeira coisa que lembrava a cerimônia de posse.
- E nesse caso, quem é você?
- Eu sou o seu salvador. Seu Hans Solo. Fui treinado para resolver esse tipo de distúrbio em planetas subdesenvolvidos.
- Ah, essa é boa, já não bastava sermos um país subdesenvolvido... Você acabou de fazer uma referência a Star Wars? – Levantou uma sobrancelha. Os aliens assistiam Star Wars? – Por que aqueles monstros ainda estariam atrás de nós se você matou o príncipe deles?
- Ah não, eu não o matei, só atordoei. E de qualquer forma, eles não podem mais se casar com você. Provavelmente só querem nos matar por vingança.
Tranquilizante.
- Por que não podem mais se casar comigo? O que você fez?
- Eu me casei com você.
11:39 P.M.
Veronica estava linda em seu vestido rosa com pedras vermelhas. O cabelo era um espetáculo.
Finalmente era chega a hora da dança da aniversariante com o príncipe.
O rapaz era um contratado do buffet. Era loiro natural, tinha olhos verdes, e era a coisa mais bonita que ela já tinha visto na vida. Os dois estiveram sorrindo um para o outro e flertando de longe durante toda a noite. Ele parecia gostar dela. Veronica, que não estava acostumada a receber tanta atenção de meninos tão bonitos, agradecia aos cabeleireiros e maquiadores profissionais que sua mãe contratara. Talvez pudessem trocar números de telefone depois da festa.
Ela andou até o centro do salão cheia de si. Havia ensaiado todos os dias, e passou a semana toda andando de salto alto em casa para ter certeza de que não cairia – não queria pagar esse mico, não naquele vestido, e não na frente de tanta gente. Não na frente daquele príncipe.
Virou-se pronta para deparar-se com aqueles grandes olhos verdes e cabelos dourados, já sorrindo só de lembrar o quanto ele era bonito. Mas ela murchou como uma folha de papel que é jogada em uma fogueira até deixar de existir. Confusa, foi recebida pelos braços tão finos quanto gravetos de um garoto de cabelo laranja.
Seu primeiro instinto foi abrir a boca para gritar (ela tinha esse costume), contudo acalmou-se. Não era uma boa ideia fazer tal coisa na frente dos convidados. Talvez o príncipe bonitão não estivesse se sentindo bem. Mas bem que podiam ter mandado algum dos garotos que estavam servindo as mesas, ou os da recepção, não é? Afinal, eles também eram bonitos como atores de musicais adolescentes. Já o ruivo que a segurava desajeitadamente era... estranho. Tão magro quanto um louva-deus, tão pintado de sardas que mais parecia estar sofrendo de uma reação alérgica. E o que era aquilo que ele estava vestindo? O terno de formatura de seu tataravô? Para piorar, ele não sabia dançar. Pisou no seu pé duas vezes e nem pediu desculpas por isso.
Alguém ia pagar caro por aquilo. Não tinha se arrumado toda para sair nas fotos ao lado de um feioso magricela com cabelo laranja.
Ela viu quando por trás dos ombros dele os garçons começaram a se reunir e cochichar entre si. O garoto ruivo também pareceu notar; ele a puxou para mais perto.
- Quando eu disser para correr – ele disse junto a sua orelha –, corra.
- O qu-
- MATEM O SENTINELA GALÁCTICO!
Veronica virou-se de uma vez na direção da voz. Era o príncipe bonitão, em cima da mesa das lembrancinhas, gritando e apontando na sua direção. Em um segundo lá estava ele, lindo e altivo, no segundo seguinte a sua cabeça explodia em mil pedacinhos gosmentos sobre os convidados. Todos começaram a gritar.
- Não pare de dançar! – exclamou o garoto ruivo. Veronica tentou livrar-se dos braços dele, mas ele era mais forte do que parecia. Estava segurando uma arma estranha de formato cilíndrico em uma das mãos, que deixou apoiada no ombro dela. – A música já está acabando!
Um garçom saltou sobre uma mesa e grunhiu barulhos estranhos, avançando sobre os dois. Antes que pudesse voar por mais do que dois metros, sua cabeça explodiu. O ruivo magrelo girou Veronica bruscamente e atirou em outro. Girou-a no meio da confusão de pessoas correndo e atirou na cabeça de um dos meninos bonitos da recepção. Ele devia ter alguma coisa contra pessoas bonitas, Veronica pensou – e não sabia por que estava pensando nisso enquanto era prisioneira de um estranho que atirava em pessoas que tentavam atacá-los. A cena acontecia rápido demais para que pudesse entender tudo o que se passava.
Ele a girou outra vez, e Veronica viu que os príncipes do buffet estavam apontando armas enormes e brilhantes para os seus convidados. Ela gritou.
- Calma, não me deixe surdo ainda, a música está prestes a acabar. Ótimo! – a valsa tinha acabado. O garoto parou de girá-la pelo salão semidestruído e segurou o rosto de uma Veronica atônita entre as duas mãos. – Com licença, gatinha.
E a beijou.
Quando ele parou, ela gritou.
Aquele ruivo sardento tinha acabado de roubar o seu primeiro beijo?!
Olhando bem, ele parecia estranhamente familiar.
- Eu prometo que vamos resolver isso assim que sairmos daqui, mas agora você tem que...
O rosto do sujeito torceu-se para trás devido à violência com a qual a mão da garota atingiu sua face direita. Ligeiro olhou para ela, com a mão sobre o rosto dolorido, e a boca escancarada.
- Eu estou tentando salvar a sua vida e você me deu um TAPA?! – ele berrou.
- E da próxima vez mantenha os seu-
Ele sacou aquela arma cilíndrica e atirou. Veronica ouviu alguma coisa explodir, e se virou a tempo de ver que era a cabeça de mais um daqueles garotos bonitos. O choque era grande demais para poder resistir quando seu pulso foi puxado na direção dos muros.
- CORRA! – o ruivo gritou. Era tentador obedecer quando se é perseguida por garotos (que eram) bonitos, com dentes pontiagudos e olhos de peixe.
Ele a pegou pelas pernas e empurrou por cima do muro alto.
- Ei! – Veronica reclamou, a barra do vestido rasgando na altura das coxas. A resposta dele foi empurrá-la com força, fazendo com que caísse de mau jeito no chão do outro lado. Levantou xingando e apalpando o traseiro dolorido, ao que ele pulava logo atrás dela. Ficou algum tempo dependurado no muro, atirando para dentro. – O que você ainda está fazendo? Saia daí!
- Arg! – alguma coisa havia prendido o braço do garoto. – AH! Droga, solta o meu relógio!
O som de alguma coisa explodindo (àquela altura, Veronica já era expert em identificar o som que fazia uma cabeça ao explodir), e o magrelo em terno azul berrante caiu de cima do muro. Caiu de pé, como um gato, sem sequer balançar.
- Eu estou bem.
- Não ia perguntar.
A expressão no rosto dele dizia: “você só pode estar de brincadeira”. Sem esperar por qualquer pergunta, empurrou-a para continuar correndo. Também enfatizou com outro berro:
- CORRA!
E ela correu. Não havia dado sequer quatro passos quando o fecho de seu sapato arrebentou e o calçado ficou para trás, enquanto ela corria atrás do estranho tropeçando em apenas um salto. Ele forçou-a a ajoelhar e arrastar pelos arbustos do parque, enchendo seu cabelo de galhos de árvore quebrados. Oh, o cabelo... Vestido, sapato e cabelo. Tudo arruinado.
Continuou correndo por uma rua desconhecida cheia de becos, e lá se foi mais um sapato.
09:17 A.M.
O aniversário de quinze anos de Veronica de Queiroz seria no dia seguinte àquele. Planejaram uma festa grandiosa, como toda garota sonha ter um dia. Pelo menos duzentos convidados, lembrancinhas individuais, um serviço de buffet personalizado, e a dança com o príncipe. Os garotos que vira na entrada eram tão atraentes que sequer pareciam humanos.
Estavam planejando aquela festa desde o ano passado. Nada podia dar errado, nem um arranjo sequer fora do lugar. Devia ser perfeito. Mais tarde, Veronica iria ao salão de cabeleireiro começar a primeira parte de seu penteado – a segunda ficaria para o dia seguinte; O Grande Dia, seu aniversário.
Ela estava com a sua mãe no buffet organizando os últimos detalhes. A mãe saíra com a gerente para ver os espaços decorados, ela ficou para trás, na sala de espera, folheando algumas revistas. Aquele terno de veludo azul na página três era verdadeiramente esquisito.
“Você conhecerá uma pessoa excêntrica que abalará a sua vida! Nesse mês, sua cor é o laranja; use e abuse”.
Veronica riu. Horóscopos idiotas...
- Ei, gatinha.
Levantou os olhos da revista. Um garoto estava na janela, borrado devido ao vidro rugoso.
- É você quem fará aniversário aqui amanhã?
- Sim, sou eu. Você quer falar com alguém? Devia entrar...
- Não, está tudo bem.
Ele não foi embora.
- Como se chama?
- Ford. Ford Prefect.
- O seu nome é...? – Antes de concluir a frase, Veronica entendeu. – Guia do Mochileiro das Galáxias?
Lá fora, “Ford Prefect” ficou quieto por algum tempo.
- Você é boa. Nos vemos amanhã.
Então ele foi embora. Através do vidro rugoso, tudo o que conseguiu ver foram seus cabelos no tom mais berrante do laranja. Que garoto esquisito.
Epílogo
Sua cabeça doía tanto que parecia ter sido pisoteada por uma manada de elefantes. Não, duas manadas. Talvez três. O mundo a sua volta estava girando e balançando sem parar, e também dava voltas o seu estômago. O vômito veio até a sua garganta, mas voltou. No teto, uma luminária branca muito forte agredia a sua vista. Com muito esforço, conseguiu sentar na cama – ao menos achava que aquilo era uma cama. Veronica passou os dedos pelos cabelos emaranhados. Que beleza, seus cabelos ainda estavam como um ninho de pássaros.
- Ah, então acordou.
O tom de voz presunçoso era inconfundível. Olhou para frente. Cabelos laranja podiam ser vistos no topo de uma cadeira acolchoada, e olhos inteiramente negros apareciam refletidos em algo que parecia ser um espelho retrovisor. Se é que naves tinham espelhos retrovisores. Parecia improvável, mas não impossível. Nos últimos instantes, Veronica tinha concluído que nada era impossível (mesmo fugir de sua festa de quinze anos casada com um alien com um péssimo senso de moda).
Se não fosse um completo absurdo, podia jurar que o vinco entre as sobrancelhas dele eram de preocupação.
- O que aconteceu com o seu cavanhaque? Os anos dois mil o sentenciaram a morte? – sua pergunta foi ferina, como tudo o que tinham conversado até então era. A resposta de “Ford Prefect” (precisava se lembrar de perguntar qual era o nome dele de verdade) foi ficar definitivamente preocupado.
- Então é assim que armas jinx funcionam em humanos.
- O que isso quer dizer? Eu nem absorvi os ashtorians direito, e agora os jinx também estão atrás de mim?
- Qual a última coisa da qual você se lembra?
Por mais simples que a pergunta pudesse parecer, conseguir uma resposta para ela foi difícil. Veronica sentiu sua cabeça martelar de dentro para fora. Tonta e vertiginosa, ela se apoiou nas paredes da pequena nave circular para tentar ficar de pé e cambaleou até o painel onde ele estava.
- Eu não sei direito, é como se... Como se estivesse tudo ao contrário... É tão confuso. – Ele acenou afirmativamente com o queixo, como se a incentivasse a continuar falando. – Me lembro de ter entrado nessa nave. Você ia me levar até os seus superiores, eu acho. Não me lembro de ter perguntado. Disse que ia resolver o fato de estarmos casados sob a lei dos ashtorians.
- Ahhh... – o vinco entre as sobrancelhas laranja dele sumiu. – Foi aí que você parou. Muito bem. Sim, eu levei você até o Palácio das Sentinelas Galácticas. Nós fizemos uma conferência com os Caveiras e nos divorciamos. Essa é a boa notícia.
- E tem má notícia?
- Você foi atingida pelo raio de uma arma jinx, é claro que há uma má notícia. – Como sempre, indiferente e presunçoso. – A má notícia é que os ashtorians nos seguiram e, bem... Bem, foi uma grande confusão. Nós acabamos indo parar em Iank, e eu acabei salvando a sua vida, e segundo as leis dos Iank, que são tipo as leis universais dessa parte da galáxia, isso fez de você minha... Como diriam os humanos, “esposa”, de novo.
Veronica precisou se segurar com mais força ao painel. Se casar acidentalmente uma vez, tudo bem, mas DUAS? Aquele ET tinha uma estranha fixação por se casar consigo.
- Isso aconteceu tem cerca de quatro anos.
Foi como ter o chão tirado de si e mergulhar em uma piscina de vazio. Veronica engasgou com a própria saliva.
- Quatro... anos? – repetiu, a voz falha.
- Sim. A arma jinx faz isso, sabe? Confunde a memória. Na verdade, tem efeito mais ou menos diferente em cada espécie. Aparentemente, é assim que funciona nos humanos. Mas não se preocupe, é uma arma de atordoamento, então você deve voltar ao normal em breve, gatinha.
- Quatro anos e você ainda me chama de “gatinha”?
A coisa mais bizarra que Veronica iria ver em toda a sua vida aconteceu naquele momento. Ford Prefect sorriu. Aquilo a deixou desconcertada por alguns segundos.
- Quatro anos e eu ainda estou presa a você? Quantas vezes nós nos casamos acidentalmente? Quando enfim teremos um divórcio que seja permanente?
- Eu espero que nunca... Cuidado com esse botão.
- O que você quer dizer com “espero que nunca”? – a frase quase a fez cair sobre o painel da nave. – Nós
ainda estamos casados por causa dos... Iak-ou-algo-assim?
- Seria mais fácil se você sentasse e esperasse sua memória voltar ao normal, gatinha. Nós fomos até a central entrar com o pedido, mas não quisemos o divórcio.
- O que? Por que não?
- Por que queríamos continuar casados?
- Agora isso é muito difícil de acreditar.
- Por quê?
- Talvez as fêmeas da sua espécie, seja ela qual for, te achem atraente, mas com os humanos...
“Ford Prefect” respirou com uma intensidade tamanha que se surpreendeu por seus pulmões não terem explodido. Sua única resposta foi tirar uma das mãos dos controles e levantá-la: havia um anel dourado em seu dedo médio. Instintivamente, Veronica olhou para a própria mão, onde havia um anel dourado em seu dedo médio. Ele também jogou alguma coisa em seu colo, que ela pegou com as mãos trêmulas. Era uma foto sua, em um vestido branco, segurando o braço de um esquelético e feioso Ford Prefect de cabelos laranja e olhos inteiramente pretos como carvão. Do jeito que estava sorrindo naquela foto, não parecia ter sido obrigada por aliens com armas brilhantes a tirá-la.
- Você insistiu em ter uma cerimônia aos moldes humanos – ele explicou o motivo de estar usando um terno preto.
- ...Ok, ok... – O ar de repente parecia estar fechando-se em volta de Veronica. Ela sentou na cadeira restante ao lado dele. – Eu preciso de um tempo para pensar.
- Pense enquanto choca os nossos ovos, por favor. Os meninos precisam de você.
O olhar que ela jogou sobre ele foi de intenso pavor. A nave ficou em completo e mortal silêncio. No retrovisor, os olhos pretos do homem de cabelos laranja pareciam estar voltados para ela; impassível e presunçoso como sempre.
- Foi uma piada.
- ESSA É A SUA CARA DE PIADA? Jesus! Quer me matar do coração?
- Essa é a minha cara de tudo.
E, como um flash, Veronica se lembrou de que aquilo era uma mentira. Aquela não era a cara dele para tudo. O pequeno curvar no canto de seus lábios e o modo como suas orelhas pontudas ficaram em riste era como ele ficava quando fazia piadas. Quando ele estava preocupado, um vinco nascia entre suas sobrancelhas. Quando ficava satisfeito, os ombros relaxavam e exalava um pequeno suspiro.
Os ombros de Pan (esse era o seu nome) relaxaram e ele exalou um pequeno suspiro.
- Ótimo, você está de volta.
- Acelere o curso, Spock, os jinx estão bem atrás de nós.
- Há um segundo você sequer se lembrava de que era uma Sentinela Galáctica, agora já é o Kirk.
Pan sacudiu a cabeça em negativa, Veronica ativou os propulsores da nave, e os dois se tornaram um ponto de luz acelerando no espaço.
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